Por José Esteban Castro*
As lutas pela água ocorrem com freqüência cada vez maior nas diversas regiões da América Latina. Analiticamente podemos dividir estas lutas em a) eventos ecocêntricos, e b) eventos antropocêntricos, ou seja, entre as lutas sociais ligadas à proteção dos ecossistemas aquáticos e aquelas orientadas para a defesa dos direitos dos seres humanos contemporâneos a quantidades essenciais de água e de serviços relacionados à água. Como tendência, as contradições entre os atores sociais engajados nas lutas pela água tendem a exprimir interesses materiais, crenças, valores, princípios e objetivos distintos e até mesmo antagônicos. Por exemplo, com freqüência os movimentos ecológicos voltados à proteção de ecossistemas aquáticos frágeis pouco se manifestam sobre a rápida expansão das iniciativas de privatização da água, embora essas políticas tenham implicações de longo alcance. O oposto também ocorre, na medida em que os movimentos que se opõem à privatização da água muitas vezes esquecem a dimensão ecológica, além de nem sempre assumirem uma posição crítica em relação às políticas que implicam a construção de infraestruturas de serviços de água de grande porte, as quais, com freqüência, têm impactos negativos, tanto nos sistemas aquáticos quanto na população.
Um dado importante é que muitas dessas lutas se caracterizam pelo confronto entre forças socioeconômicas e políticas que promovem a expansão das relações capitalistas, particularmente a transformação da água em mercadoria e as diferentes formas de resistência a essas forças. Embora no debate atual esse confronto em geral se reduza à tensão entre o “público” e o “privado”, isto obscurece o fato de que, na prática tanto os atores públicos quanto os privados tendem a induzir a subordinação das necessidades sociais ligadas à água às exigências de acúmulo de capital. Por exemplo, exige-se cada vez mais das companhias públicas de saneamento e abastecimento de água, que adotem princípios comerciais para o fornecimento de serviços vitais, como água potável e esgotamento sanitário, abandonando a noção de que esses serviços são um direito social ou um bem público, sem dizer que são um direito humano. A esse respeito, existem lições importantes a serem aprendidas a partir das lutas pela água na América Latina, onde os atores sociais com freqüência demonstram ter uma compreensão muito clara dessas complexidades: suas lutas contra a mercantilização da água são voltadas tanto contra iniciativas públicas como privadas na sua oposição à mercantilização de serviços essenciais de água. Essas lutas incluem a resistência a formas abertas ou disfarçadas de privatização desses serviços (por exemplo, parcerias público-privadas ou a mercantilização das companhias públicas de saneamento), e tentam revitalizar a noção de que esses serviços são um direito social da cidadania, um bem público, e um direito humano. Ao mesmo tempo, suas estratégias estão crescentemente orientadas para o fortalecimento das autoridades locais, por exemplo, forjando parcerias público-públicas para o gerenciamento eficiente e democrático dos serviços essenciais de água.
Além dessas formas de luta pela água, existem duas outras tendências que merecem destaque. A primeira diz respeito à rápida expansão dos processos agrícolas intensivos em uso de água que ocorrem na região, em particular a produção de agrocombustíveis. À medida que boa parte desse debate gira em torno do impacto desses processos sobre a segurança alimentar, pouca atenção foi dada, até agora, às implicações sobre os ecossistemas aquáticos e os serviços de água essenciais. O segundo aspecto está ligado ao potencial de confronto militar em torno dos recursos hídricos. Embora isto possa parecer uma possibilidade remota, alguns governos latino-americanos estão reformulando suas estratégias militares para reagir a eventuais invasões de potências estrangeiras, que poderão querer ganhar controle sobre a água doce da região.
Essas diferentes formas de lutas pela água estão estreitamente relacionadas com o conflito pela governança democrática da água. Do nosso ponto de vista, a governança é um processo político que envolve o exercício do poder por atores sociais e políticos que buscam definir os meios e os fins a serem perseguidos pela sociedade, nesse caso particular, com relação à posse, gerenciamento e acesso aos benefícios derivados da água (e proteção contra os riscos relacionados com a gestão deste recurso). Observa-se que, como tendência histórica, a governança da água na região não se destacou por seu caráter democrático, especialmente ao rejeitarmos a redução do processo democrático à democracia eleitoral e defendermos o entendimento de que a democracia é o exercício substancial da cidadania. A esse respeito, entendemos que o crescimento das lutas pela água na América Latina constitui a expressão da batalha em curso pela democratização substantiva da sociedade.
*José Esteban Castro é catedrático de Sociologia da Escola de Geografia, Política e Sociologia da Universidade de Newcastle, Reino Unido.
Traduzido do original em inglês por Emmanuel Cavalcante
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